61% dos adultos com TDAH têm problemas sérios e recorrentes com gestão financeira.
Pois é. Vamos começar pensando quais são os sintomas e desafios inerentes ao TDAH que podem prejudicar a nossa gestão financeira. Listei algumas delas:
Cegueira temporal - é a tal “miopia para o futuro”.
Pessoas com TDAH não conseguem enxergar muito bem as coisas que estão por vir. Somos sempre surpreendidos por compromissos financeiros que, na verdade, poderiam ser previstos e planejados, porque acontecem com determinada frequência (como imposto de renda, IPTU, IPVA…).
Impulsividade.
Pensar na impulsividade costuma nos fazer pensar primeiro no comportamento verbal. Mas precisamos saber que ela também pode se estender a quaisquer outros comportamentos, como o financeiro . A gente não só fala e age sem pensar: também compramos sem pensar.
Permanência de objetos.
As coisas são difíceis de serem percebidas e lembradas por nós se estão longe do nosso campo visual. E qual é o problema disso? É que se eu esqueço que fui ao cinema, esqueço que comprei um vestido e esqueço que jantei naquele restaurante caro, isso pode me fazer pensar que posso gastar de novo, porque penso que tenho disponível um dinheiro que já foi gasto.
Comprometimento das funções executivas.
As funções executivas nos dão a capacidade de organização, planejamento, gerenciamento de tempo, execução de tarefas, memória de trabalho…
Como você já deve imaginar, o TDAH causa um prejuízo significativo nas nossas funções executivas. Uma analogia de que eu gosto muito é a de que as funções executivas são o nosso gerente, o nosso maestro, são aquelas que nos permitem realizar autogerenciamento. Se o autogerenciamento é custoso para nós, gerenciar as nossas finanças também é.
Discalculia.
Uma parte das pessoas com TDAH sofrem de discalculia. Nós podemos pensar ter 5430 na conta quando, na verdade, temos 540.
Vergonha.
O TDAH, frequentemente, pode nos fazer sentir que não somos capazes de ser adultos e desempenhar tarefas da vida adulta, como organizar o dinheiro de forma responsável. Essa é uma questão frequente na clínica com meus pacientes e também na minha vida de adulta com TDAH. Sentir que não somos capazes de realizar tarefas simples e das quais não podemos fugir pode trazer esse sentimento de vergonha, e isso pode levar à evitação.
Evitação.
É uma forma de fechar os olhos para algo que não conseguimos lidar.
Uma história minha que gosto de contar para exemplificar a questão da vergonha e da evitação é de quando, durante a faculdade, emprestei um livro na biblioteca e esqueci de devolver dentro do prazo. Eu teria que pagar uma multa via boleto bancário e simplesmente não conseguia digitar os números do código de barras de forma correta - trocava a ordem e errava os números, muitas e muitas vezes. Essa multa só foi paga no último ano da faculdade e a biblioteca era um lugar que eu evitei durante toda a graduação porque me remetia a tarefas que eu não conseguia realizar e que me causavam muita vergonha.
Tá, mas o que você pode fazer? Essas são algumas das estratégias mais eficientes que trabalho com meus pacientes:
Gentileza, paciência e bom senso.
Lidar com o seu processo com gentileza, paciência e bom senso (na hora de fazer comparações, consumir conteúdos nas redes, etc).
O que eu preciso que você saiba é que é impossível passar por um processo novo sem errar. Aprender a lidar com o dinheiro tendo TDAH é algo que nunca nos foi ensinado. Não é sobre ter paciência e ser gentil comigo “se eu errar”, mas “quando eu errar”. Tenha paciência com o seu processo, isso leva tempo. E não é produtivo e nem faz sentido focar em pessoas que não têm a sua realidade. É diferente fazer planejamento financeiro tendo TDAH e fazer planejamento financeiro sendo uma pessoa neurotípica, assim como também é diferente fazer o planejamento financeiro partindo de um orçamento de 10 mil e partindo de um orçamento de mil.
Automatizar: débito automático, pagamentos programados, alertas de saldo baixo, alarmes para pagamentos…
Automatizar se trata de exteriorizar processos cognitivos. Fazemos isso visando ter um uso muito consciente das nossas funções executivas. Não vamos ficar quebrando a cabeça e insistindo em tarefas que podem ser automatizadas. Tudo que eu puder tirar a responsabilidade de mim e diminuir o meu custo de função executiva é mais do que bem-vindo. Evite “precisar lembrar" e priorize “ser lembrado”. Isso é muito importante: permita que seja feito em vez de você precisar fazer.
Se proteger contra a impulsividade.
Muitas compras descabidas e das quais podemos nos arrepender depois podem ser evitadas com uma lista de desejos que deve te lembrar de quais compras você deseja fazer. Isso também é uma ferramenta de exteriorização cognitiva, porque opera como se fosse um HD externo que guarda os nossos desejos de consumo. Então, quando eu penso em comprar algo, devo olhar minha lista de desejos e repensar “será que essa compra faz sentido? Será que tem outros desejos que têm maior prioridade?”
Além disso, cuidado com a compra por clique! Isso foi feito, justamente, para comprarmos tomados pela impulsividade.
Bons hábitos em relação a nossa rotina também nos protegem contra a impulsividade, como alimentação saudável e exercícios físicos.
Orçamento simplificado e preventivo.
Lembra que “o que os olhos não veem não existe"? Nesse caso o que você não vê é o seu limite bancário e as contas em aberto.
5 passos para uma gestão financeira TDAH friendly
1) Saiba qual é a sua renda e quais são os seus custos. Essa pode ser a parte mais difícil, mas algumas coisas podem ajudar:
Opte por bancos e aplicativos que façam essa categorização. Eu tenho usado o Nubank, assim como alguns dos meus pacientes.
Peça ajuda a um amigo, faça um happy hour financeiro.
Delegue essa função a alguém de confiança (cônjuge, pai, mãe...).
Contrate alguém (consultor financeiro ou BPO).
Também é interessante pensar no seu orçamento a partir de níveis de acesso. Veja:
A partir disso, o dinheiro dos seus gastos mensais e anuais podem ser classificados como:
Para te auxiliar nesse processo, elaborei essa planilha de gestão financeira:
2) Subtraia os seus custos da sua renda.
3) Tire o dinheiro referente aos seus custos da sua conta corrente.
Coloque esse dinheiro em outra conta ou aplicação que permita resgate imediato. Você pode usar caixinhas (como as que têm no aplicativo do Nubank), aplicações de liquidez imediata ou diária e contas separadas para projetos específicos.
4) Coloque na sua agenda as datas de pagamentos como tarefa ou evento - no caso, o Google Agenda, que eu uso e recomendo para todos os meus pacientes.
5) Ative lembretes para checar o seu saldo, valores debitados da sua conta, etc…
Por fim, eu queria que você chegasse ao final desse blogspot sabendo que, sim, é muito mais difícil realizar a gestão financeira tendo TDAH. Mas com as acomodações e as ferramentas corretas - as que são adequadas para o nosso perfil cognitivo, ou seja, para o modo de funcionamento do nosso cérebro -, é possível :)
E lembre-se: gentileza, paciência e bom senso em relação ao seu processo.
Vamos juntos!
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